
Naquele dia, ela cismou comigo. Mas eu não fazia parte do grupo dos bagunceiros. Eu era invisível. Ficava rabiscando personagens na última página do caderno. Esboços de histórias em quadrinhos cujo único leitor era eu mesmo. Não havia me descoberto poeta ainda, pelo menos não no sentido de criar versos. Mas era poeta no jeito de olhar o mundo. Via as plantas que nasciam dentro do pátio da escola e se enroscavam na cerca, como prisioneiras ansiando pela liberdade nas ruas. Ah! As ruas! Que tinham aquele apelo de “mundo dos adultos”, proibidas e por isso mesmo tão sedutoras. Naquele dia, ansiei mais do que nunca me jogar em seus braços cinzentos feitos de concreto e fumaça de ônibus. Naquele dia, ela cismou comigo. Mas...Como? Eu era invisível!
---Você! Repita o que eu acabei de dizer!
Ela achava que eu não estava prestando atenção à aula. Eu sabia o que ela tinha acabado de dizer, mas...Travei! Balbuciei algo no desconexo linguajar das pessoas tímidas pegadas de surpresa, e resolvi calar-me. Fui agraciado por aquela mulher de semblante de permanente ódio, com um ponto negativo.
Na hora do intervalo dirigi-me a cerca, mas diferente das plantas não haviam raízes que me prendessem àquele solo, me encaminhei ao buraco, escondido apenas por uma tábua, por onde já vira outros garotos ganharem as ruas na semana anterior. A única criatura que tinha poderes sobrenaturais de enxergar-me em minha invisibilidade, não estava por perto agora. Atravessei o buraco, como se fora uma passagem interdimensional de uma esfera pesada controlada por uma disciplina dura e militar, para um mundo de cores e sensações que me faziam sonhar: Aquele casal no bar...O homem de espesso bigode acaricia com mão grande e forte a cintura macia da dama vestida de vermelho. Eu sou ele. Bebo daquele copo. A água amarela com espuma branca. Imagino que pelo gosto com que ele saboreia (passa até a língua na espuma que fica no bigode) deveria ser tão saboroso como o Toddinho que distribuíam no recreio. Perambulo o resto da tarde, abastecendo-me de imagens, cheiros e vozes...E isso dura até agora, e o corpo invisível do menino dá lugar ao homem de 42 anos de idade...Se tornou poeta? Alcançou seus objetivos? Só sente, com certeza, que cada momento desagradável que já passou, é como se aquele olhar duro da professora que tudo via, ainda persistisse sobre si. Mas, seu consolo é que por mais penetrante que fosse tal olhar, não poderia chegar ao cerne de seu ser. Então, o homem sorri um sorriso ao mesmo tempo irônico e amargo.
--- O gerúndio de falar é falado, professora! E eu não falei por que tive vergonha! Sua... Cretina!
Um comentário:
Invisível homem indivisível.
boa crônica Andrezim!
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