quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O Sorriso do Angolano



-- Boa tarde! Meu nome é Keza! Vim de Angola! Estou a vender estes deliciosos drops!

Justiniana era uma flor murcha e enrugada no canto mais escuro do último banco do ônibus. Os dedos cadavéricos de repente despertam num tremor de parkinson, sobre o crucifixo pendurado no pescoço, como se de fato (imagine!) manipulasse de forma lasciva o corpo seminu de Cristo pregado e desgostoso com nossos pecados. O sorriso do angolano foi como um raio de sol, levando um pouco de calor àquele corpo frio e fechado dentro de si próprio, esperando o retorno do Senhor, para trazer salvação para tão piedosa e dedicada criatura e danação eterna à toda gentalha imunda de vício e imoralidade. "O sorriso deste negro!Que dentes bons!" O ar começa a lhe faltar, as palavras carregadas de simpatia do estrangeiro pareciam lhe atravessar como dardos envenenados com uma substância ardente, a qual a vida inteira evitou de se contaminar. Mas era irresistível. Deixou cair uma moeda a mais na palma clara da mão negra enorme. "Oh! Esta palma eu beijaria! Até receberia uma bofetada! Ai, Senhor! Mas é um negro limpo! Elegante! De outra terra! Oooh..." O tremor dos dedos, feitos garras de abutre, aumenta ao tentar rasgar a embalagem. Precisava chupar os drops daquele homem exótico e viril. Coloca logo três tabletes na boca, e os suga com sofreguidão. Imaginava aquelas balinhas brancas a derreterem em sua língua como algo saído das entranhas daquele corpo de ébano, como um deus africano conspurcando-lhe a ressequida e intocada carcaça católica.
--- Tião! Tião! Traga mais drops! Acabou tudo!
A velha engasga, ao ver um menino de camiseta suja e rasgada, shorts e havaianas em petição de miséria, surgir de trás do angolano e enfiar a mão dentro de uma sacola e tirar mais embalagens de drops.
--- Táqui, mano!
"Um pretinho!! Daqui!! Um miserável daqui!!! Um trombadinha!!! Da ralé!! Da gentalha!!" Eram os pensamentos que explodiam como gritos silenciosos dentro do crânio da fanática.
---- AAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!! AAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!
Como uma múmia a levantar-se de um sarcófago amaldiçoado, Justiniana cospe os drops e aperta alucinadamente o botão para que o ônibus parasse. Mal se abrem as portas e o corpo seco como um pergaminho antigo e repleto de calamidades voa, antes da parada efetiva do veículo. A pilastra ao lado do ponto de ônibus recebe o baque daquela caixa cheia de preconceito, ódio e miolo mole.
Forma-se uma roda de curiosos, uns rostos indiferentes, uns enojados e muitos irônicos. O do angolano e do menino, tinham uma surpresa horrorizada, mas logo suspensa pela aproximação de mais um ônibus.
--- Tião! Tião! Fazer dinheiro, gajo!
E lá partem os dois, sem a mínima desconfiança de que foram detonadores das mais fortes emoções, naquela abafada tarde de verão.

Um comentário:

Caranguejunior disse...

Muito bom!
Da hora as comparações.


abraço andrezim!