segunda-feira, 11 de maio de 2015

Exorcismo Hardcore: Ainda Somos Homens de Cro-Magnon



Algum tempo atrás,observava crianças brincando num shopping center. Era uma espécie de jaula inflável, cuja entrada era a boca de uma enorme cabeça do coelho Pernalonga. Fiquei tentando captar o sentido daquela imagem. As crianças pulavam e trombavam umas nas outras, com uma alegria histérica. Observava como se nunca tivesse passado por isso, ou tentava buscar nos confins empoeirados da memória o que fazia com que agíssemos assim na infância.
Hoje, me encontro sacolejando os membros de forma selvagem em meio a sujeitos tatuados de aspecto ameaçador, sob um trovejante som de bateria, baixo, guitarra e gritos que nos impulsionam a um instinto básico, que antes tentei captar seu sentido na visão daquelas crianças pulando euforicamente. Mas apesar de sermos todos marmanjos barbados, ainda era uma brincadeira, apesar que o chão não era fofo como o interior do Pernalonga inflável e uma trombada de um sujeito enorme e marombado pareceu tirar meu ombro do lugar por um breve momento.
A banda era "Cro-Mags", e que funcionava para aquele determinados publico como gatilho dessa emoção primária que não se perdeu da infância, apenas tomou outras formas e significados.
Três bandas nacionais tocaram antes, e o publico ainda estava frio, mas eu não sei se por ser poeta, um bicho emocional por excelência, já comecei a sacolejar o esqueleto e esmurrar o ar á cada estrondo sonoro da musica hardcore. Ok. Somemos a isso as decepções cotidianas, e a furia deve ser extravasada de algum modo. A emoção primal, que julgamos perdida, depois da juventude, na verdade se transmuta no gosto por determinada musica, torcer por um time, xingar o juiz ou sair no pau com outra torcida. Mas neste ultimo caso, trata-se de uma falha na adaptação do homem primata á civilidade, onde a energia primal não se esvai da maneira correta, colidindo com as leis de convívio em sociedade.
E, diferente de outras cenas do universo roqueiro, apesar da aparente brutalidade da 'roda de pogo', que aos olhos dos leigos possa parecer uma briga generalizada, ao 'stage diving'(que não é o 'mosh' como muitos pensam, o 'mosh' corretamente seria a 'roda de pogo')em que o sujeito sobe no palco e 'mergulha'na platéia, num verdadeiro impulso kamikaze, o que presenciei foi um ambiente de extrema civilidade e repeito. Cabeludos com camisetas de heavy-metal convivendo em paz com sujeitos com cabeças raspadas á zero e outros que pareciam saídos daqueles filmes de gangues, verdadeiros 'chicanos' com lenços amarrados na cabeça e tatuagem até no rosto.
Esta cena hardcore atual tem uma noção de 'família'. E é descendente de uma geração punk, onde a 'treta' era certa. Agora a furia só explode na hora da 'dança', se podemos chamar assim. O vocalista da banda 'Questions' fez um discurso bem articulado contra o fascismo (algo que se espera do punk em geral), mas também condenou o sexismo e a homofobia, defendeu a proteção aos animais e a greve dos professores. Não aquela velha lenga-lenga de "Anarquia e botar pra fuder".
Talvez até por esse publico ser formado por grande parte de 'straight edges', ou seja, vegetarianos que não bebem ou se drogam. Se vi meia dúzia de sujeitos com latinha de cerveja, foi muito. Cruzo com alguém com uma camiseta com o desenho de uma vaquinha e embaixo escrito: "Não Mate". E foi a primeira vez que comi um sanduíche 'vegano'! Era algo que parecia carne, mas não era carne, e até que não estava ruim,não. Então pensei que o que o que somos, também está relacionado com o que ingerimos. Mas a energia vai estar sempre lá. E ela precisa ser posta para fora. É como a reação de pessoas que me conhecem após verem minhas performances poéticas. Elas pensam que sou louco. Violento. Ou sei lá oquê. E se surpreendem com o sujeito tímido que surge após gritos e quedas estrondosas no palco. A poesia é meu 'grito primal'. Como já enfatizei no poema intitulado 'Saudades do Primata':

Sei que está aqui
Dentro das entranhas civilizadas,
Saudades do primata
Vigoroso, físico, vital

Ah! Tantos pensamentos!
Eu não quero religião!
Quero sentir Deus no sol
Quero sentir Deus na lua

No vento que sopra na cara
Quando parto para a caça,
Quero meu porrete
Não o velho Sr. Aurélio!

Não quero palavras novas,
Quero viver
Correr nas matas
Quero acasalar

Quero parar o poema aqui
E dar meu grito primal!

Mesmo que exista a civilidade e até mesmo a espiritualidade como no meu caso, a energia primal é como um 'alien' crescendo em nosso organismo, e que alguma hora vai romper nossas entranhas, até mesmo como uma úlcera ou câncer, então porque não deixá-la sair de um modo positivo? A banda 'Cro-Mags' é um exemplo disso, do selvagem, que mesmo sob uma filosofia espiritual, no caso o 'Hare-Krishna', foi palco de desavenças e um ultimo e lamentável caso de violência : o baixista fundador da banda esfaqueou seu substituto, indignado por ser trocado. O vocalista já chegou a ironizar outra banda 'Hare-Krishna", o 'Shelter', dizendo que eram hipócritas por entregarem a palavra de 'Krishna" como uma flor, e que eles a entregavam como um taco de baseball. Então é isso. Como disse meu amigo Ni Brisant, que precisava ir a um show para exorcizar. E é mesmo um exorcismo. Sorrio, pensamento nisso, quando é anunciada a musica "Crush The Demoniac". Todos esmagando seus demônios, embaixo de coturnos e tênis, numa furia alegre, como as crianças dentro do Pernalonga. Apesar das adaptações, ainda somos 'homens de Cro-Magnon'. Saio cambaleando, o calor da adrenalina passa e meu corpo esfria. Começo a sentir as cotoveladas nas costelas, as bicas nas canelas, o ombro que tomou a trombada. Pego o ônibus, e apesar do horário, ele ainda enche. Logo uma senhora gorda fica prensada ao meu lado, com a ponta da bolsa esmagando meu mamilo. Mas tudo bem. Tô calminho...Calminho....

Um comentário:

Caranguejunior disse...

Da hora Andrezão!

também preciso de uma rockeiragem urgente!

Foda esta crônica bate cabeça!!

abraço!