terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Que o Mundo Seja Esse Sofá

 

São 3:00hs da manhã. Ela acorda com uma agonia no peito, como se dois pés a esmagassem. Os olhos embaçados ainda enxergam a figura sombria que pula no chão e some pela porta do quarto. Corre então, assustada para o quarto do bebê, mas o encontra, felizmente, ressonando tranquilo. Toca de leve, o narizinho da criança, lembrando de quando falou ao companheiro: “ O narizinho do papai”! Ao que ele respondeu, bonachão como de costume: “Ah! Nenê tem tudo cara igual de joelho!”

Agora, mais e mais enxerga traços do marido na face em desenvolvimento do pequeno. Seu tesouro. Sua razão de viver hoje. Jeferson foi levado, vitima desse maldito vírus. Parece que foi ontem. Recebeu a ligação do hospital, onde ele trabalhava como enfermeiro. Rápido como um piscar de olhos. O sorriso a lhe dizer: “Tudo bem!” E de repente, entubado e incomunicável.

Vai até a sala e observa o sofá vazio. Os olhos queimam ante a lembrança dos dois, abraçados, ele lhe beijando o ombro e ela, retribuindo, mordiscando de leve sua orelha, ele se tremendo todo. Ambos rindo aquela felicidade simples da união de almas afins.

Ela senta. Liga a TV e é o mesmo reality-show de horror de sempre, a qualquer hora. A humanidade tomba aos milhares a cada dia. Um inimigo microscópico e traiçoeiro. “Não era pra ser de uma vez? Com um meteoro varrendo todo esse erro que o homem fez com a terra?” Pensa ela, puxando a camisola para o rosto banhado em lágrimas já tão escassas, de tanto prantear nesses meses de pesadelo. “Vai ficar tudo bem”! Sente agora a mão enrugada da avó, lhe tocando a coxa, e a velha senhora lhe assoprando o ardido merthiolate no machucado do joelho, após o tombo da primeira queda de bicicleta.

---- Amanda! Sua vida terá muito mais quedas de bicicleta. É só saber bater a poeira e levantar...

Ela olha para o lado e lá está o sorriso incansável da boa velhinha. Sente um beijo no ombro. Do outro lado, está o Jeferson , com o velho ar brincalhão, lhe afirmando que sempre estará com ela...Os amigos afastados pela interminável quarentena também estão lá, rindo e brindando com taças de onde saem bolhas em formato de coração.

O sofá, constata admirada, agora mede quilômetros e quilômetros..Vozes cheias de alegria e em diversas línguas cantam a canção de natal definitiva, que transcende crenças e religiões..Uma canção para celebrar este grande abraço feito da certeza de que todos somos navegantes num mesmo barco, em direção a um mesmo destino...

Amanda de repente desperta, a televisão a tempos atrás, estaria fora do ar, com a tela tomada por chuviscos, mas hoje não, ela ainda ouve uma canção, mas não aquela tão grandiosa, é apenas a canção da vinheta de fim de ano, onde o elenco da emissora se abraça graças aos efeitos de um mundo virtual em que a humanidade mergulhou por opção, e de qual é prisioneira hoje, por obrigação. Ela volta a visão para o pequeno sofá, mas a imagem do sonho ainda é tão viva, que a faz acariciar o tecido desgastado e palco de um amor tão sincero e exclama, deixando cair uma última lágrima, que morre num sorriso de esperança:

---- Que o mundo seja esse sofá!

 

 

André Diaz


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