São 3:00hs
da manhã. Ela acorda com uma agonia no peito, como se dois pés a esmagassem. Os
olhos embaçados ainda enxergam a figura sombria que pula no chão e some pela
porta do quarto. Corre então, assustada para o quarto do bebê, mas o encontra,
felizmente, ressonando tranquilo. Toca de leve, o narizinho da criança,
lembrando de quando falou ao companheiro: “ O narizinho do papai”! Ao que ele
respondeu, bonachão como de costume: “Ah! Nenê tem tudo cara igual de joelho!”
Agora, mais
e mais enxerga traços do marido na face em desenvolvimento do pequeno. Seu
tesouro. Sua razão de viver hoje. Jeferson foi levado, vitima desse maldito
vírus. Parece que foi ontem. Recebeu a ligação do hospital, onde ele trabalhava
como enfermeiro. Rápido como um piscar de olhos. O sorriso a lhe dizer: “Tudo
bem!” E de repente, entubado e incomunicável.
Vai até a
sala e observa o sofá vazio. Os olhos queimam ante a lembrança dos dois,
abraçados, ele lhe beijando o ombro e ela, retribuindo, mordiscando de leve sua
orelha, ele se tremendo todo. Ambos rindo aquela felicidade simples da união de
almas afins.
Ela senta.
Liga a TV e é o mesmo reality-show de horror de sempre, a qualquer hora. A
humanidade tomba aos milhares a cada dia. Um inimigo microscópico e traiçoeiro.
“Não era pra ser de uma vez? Com um meteoro varrendo todo esse erro que o homem
fez com a terra?” Pensa ela, puxando a camisola para o rosto banhado em
lágrimas já tão escassas, de tanto prantear nesses meses de pesadelo. “Vai
ficar tudo bem”! Sente agora a mão enrugada da avó, lhe tocando a coxa, e a
velha senhora lhe assoprando o ardido merthiolate no machucado do joelho, após
o tombo da primeira queda de bicicleta.
---- Amanda!
Sua vida terá muito mais quedas de bicicleta. É só saber bater a poeira e
levantar...
Ela olha para
o lado e lá está o sorriso incansável da boa velhinha. Sente um beijo no ombro.
Do outro lado, está o Jeferson , com o velho ar brincalhão, lhe afirmando que
sempre estará com ela...Os amigos afastados pela interminável quarentena também
estão lá, rindo e brindando com taças de onde saem bolhas em formato de
coração.
O sofá,
constata admirada, agora mede quilômetros e quilômetros..Vozes cheias de
alegria e em diversas línguas cantam a canção de natal definitiva, que
transcende crenças e religiões..Uma canção para celebrar este grande abraço
feito da certeza de que todos somos navegantes num mesmo barco, em direção a um
mesmo destino...
Amanda de
repente desperta, a televisão a tempos atrás, estaria fora do ar, com a tela
tomada por chuviscos, mas hoje não, ela ainda ouve uma canção, mas não aquela
tão grandiosa, é apenas a canção da vinheta de fim de ano, onde o elenco da
emissora se abraça graças aos efeitos de um mundo virtual em que a humanidade
mergulhou por opção, e de qual é prisioneira hoje, por obrigação. Ela volta a
visão para o pequeno sofá, mas a imagem do sonho ainda é tão viva, que a faz
acariciar o tecido desgastado e palco de um amor tão sincero e exclama,
deixando cair uma última lágrima, que morre num sorriso de esperança:
---- Que o
mundo seja esse sofá!
André Diaz
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