
--- Eu sonhei com um anjinho...Um anjinho com peitinho....
Claudemir cantarolava, enquanto arrastava sua carcaça de meia idade, naquela situação em que as carcaças de meia idade se encontram no início da noite de sextas feiras em uma grande metrópole como São Paulo, após mais uma brutal jornada de trabalho. Claudemir queria mesmo era ser escritor. Mas seus textos longos sempre acabavam no lixo. Acabou tendo prejuízo com seu único livrinho de poesia, cheio de rimas pobres, mas ricas de um sentimento que ainda cismava em manter vivo. A esperança de que ainda cruzasse seu caminho "o anjinho com peitinho". Personagem inspirador de seus versos e um romance inacabado.
---- Sim...Sou sobrevivente de "romances inacabados"...
Uma imagem lhe chama a atenção. Na cerca de uma empresa, onde um amigo trabalhava, havia uma rosa presa no arame farpado. Não havia como alcançá-la, sem rasgar as mãos. Reconheceu aquela imagem como a melhor definição do amor que já lhe tivesse passado pela poética mente.
--- Demir! Demir!
Era o amigo que saía do serviço, para tomarem umas.
Claudemir aponta a cadeira do lado de fora, com um casaco pendurado:
--- Eu nunca vi o guarda!
---- Ah! O patrão só deixa a cadeira com o casaco pra fingir que tem um guarda! A mesma coisa a câmera, que não funciona e a placa que diz "Cuidado com o Cão", não tem cachorro nenhum!
Começaram a descer a avenida, em direção ao boteco. Claudemir fica encantado com a beleza da carroça que um senhor vem puxando, mais perto verifica que na verdade era um armário que o carroceiro vinha trazendo. Um primor de móvel antigo. Um carro pára ao lado, no farol. O carroceiro cumprimenta o motorista, que corresponde. O amigo de Claudemir também dá "oi" ao velho.
--- Quem é?
--- Não sei o nome dele! Acho que ninguém sabe! Todo mundo chama ele de tiozinho!
Claudemir também se via à caminho, à curto prazo, de se tornar um tiozinho, e também de passar despercebido, mas só ele mesmo sentir isso. Afinal, todos o cumprimentariam ainda. Mesmo que não soubessem seu nome. E fingissem se importar com ele, cumprimentando-o: "Oi, tiozinho!"
A importância de Claudemir seria mais uma das mentiras da sociedade cinza, com sua sensibilidade de concreto. Mais uma mentira, como o guarda e o aparato de segurança inexistentes da empresa de seu amigo. Aliás, qual o nome do seu amigo? Será que até sua existência se tornou uma fraude para Claudemir? Ele era seu amigo realmente, ou apenas um companheiro de bebedeira?
Adentram o pequeno boteco, com a placa lhe lembrando que não passavam disso: "Os Filhos do Porre".
Meia dúzia de cervejas depois, a conversa, se direciona ao descontentamento com as chances de privilégios de uns, e a total ausência para outros.
--- Demir! Hoje me deu "piriri", e como fiquei por último, não quis nem saber, usei o banheiro privativo do chefe! Adivinha! O maluco tem chuveirinho, mano! Se com a dor de barriga que me deu, fôsse usar o dos funcionários, iria acabar com o rolo de papel, depois iria ouvir, ainda! Mas com o chuveirinho...O negócio lava tudo! A hemorroida mais nervosa vira o couve flor mais cheiroso! Daí...Pra tu ver... Porque a gente não pode ter chuveirinho, também? Porque uns rabos merecem o carinho duma ducha, enquanto outros, que se rasguem com papel ordinário?
Aquela conversa de banheiro deu vontade em Claudemir de ir "tirar a água do joelho" e algo mais. Lá, ele observa os remendos nos fundilhos, e se dá conta que também sua alma estava cheia de remendos.
"Me esfolando todo no arame farpado da vida, a fim de alcançar a rosa do amor...."
De volta à cerveja, já não encontra mais o amigo:
--- Seu Zé!! Viu meu amigo?
--- Amigo? Essa conversa não cola mais! Não vai sair sem pagar!
Confuso, tira a carteira e toma um susto com a conta. Mas logo esquece disso, ao passar uma mocinha cheirosa por ele.
E com voz pastosa, os velhos versos vem a tona:
--- Eu sonhei com um anjinho....Um anjinho com peitinho...
Uma década atrás, teria tido uma ereção, mas hoje, com a virilidade se esvaindo como a cerveja na urina, em sua carcaça de meia idade, a pose de macho e comentários safados de bar, também já não passavam mais de uma mentira, mantida por força do hábito, ou melhor, por vergonha. Sente, na verdade, que a falta de controle genital transmutou-se numa espécie de tendência canibalesca,em que se via, não em intercurso com seu "anjinho", mas como um predador usando o que ainda lhe restava de rígido em seu corpo, os dentes, a estraçalharem os pequeninos seios numa orgia de sangue.
O delírio é interrompido imediatamente, lembra-se que deveria aproveitar enquanto era beneficiado de um convênio dentário da em presa e dar "uma geral" na boca, evitando que até os dentes já não fosse capazes de morder as "tenras carnes". Lembrando-se do semblante desolado de uma senhora no ônibus, observando um orçamento dentário e que havia o desenho de vários dentes circulados: "Sinal: R$700,00 + 6 de R$ 500,00."
---- E aí, Demir? Tá vendo o Big Brother? Tem um poeta lá, que nem você!
Claudemir tenta fixar a vista no rosto embaçado do amigo, que parecia querer se desfazer no ar. Pensa que o filho da puta sempre some na hora da conta, mas decide ficar quieto e se levanta, sem se despedir. Vira-se para o dono do bar, e grita, soltando perdigotos como insetos prateados:
---- A porra do poeeetaaa é um fingidooor!!!!!!!!
Vai se arrastando de volta para casa, pensando no destino do "poeta do Big Brother". Seria ele, um poeta de mentira? Ou se real, transmutaria-se inevitavelmente em poeta de mentira, embrulhado para consumo rápido no fast-food televisivo? De repente, reconhece a menina do outro lado da rua.
---- Oi lindo! Quer fazer, nenê?
Ele agarra os delicados seios, espremendo-os como duas mexericas.
----Aaaaaahhhhhhhhhh!!!!!
---- Não! Nenê sou eu!! Nenê quer mamar!!
A moça começa a gritar, um brutamontes surge do nada, e apesar de cambaleante, Claudemir consegue escapar na escuridão.Passando em frente à firma do amigo, as lágrimas caem como cascata ante a visão da rosa presa no arame farpado.
No dia seguinte, a TV anuncia:
--- Foi encontrado hoje, o corpo que à princípio, suspeita-se tratar-se do cruel "Poeta Canibal", que já atacou diversas mulheres, em sua maioria prostitutas, que tiveram seus seios mutilados e o sangue usado para escrever versos na cena dos crimes. Ele estava com os braços enrolados numa cerca de arame farpado de um terreno baldio. Suspeita-se de execução. E agora, é com você, Bial!
---- Salve! Salve! E falando em poeta, nosso poeta do bem, Adriles, é o novo líder na casa mais vigiada do Brasil! Não perca! Logo depois de Império!
Um comentário:
Porra Andrezão!!
Esse é sem dúvida de sombras, um dos seus melhores contos que já li aqui!!
Parabéns meu véi, escrevendo para caraleo!!!
orgulho de ter um amigo escritor dos bons!
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