"Ploct...Ploct..Ploct..." Minhas meias empapadas dançavam dentro de minhas botas encharcadas. O que era pra ser um passeio de domingo cheio de distração dos perrengues cotidianos se tornou uma verdadeira roubada. "Saí da minha cama quentinha pra isso.." Pensava indignado... Desde o estouro da pandemia minhas andanças minguaram e a arte de "flanar" como diria o grande cronista João do Rio ficou num passado distante...Não muito nublado, pois tem seu testamento escrito e os herdeiros dessa tristeza infinita um dia pararão para ler e se perguntarão..."Que porra queria André Diaz"? Amor? Um lugar no mundo pra chamar de seu? Ou apenas um canto sossegado sem seres escrotos para lhe encherem o saco? Mas também sem esses seres escrotos qual seria a motivação do poeta..Do cronista..Do contista...Da puta que pariu... Não sei lhes responder com certeza. Mas uma coisa é certa. O bagulho é doido e já faz meio século já, de procura infrutífera.
Choveu. Choveu para um caralho...Os anjos choraram borbotões em cima dessa "gente careta e covarde", como diria Cazuza... E as banquinhas de livros baratos da Paulista foram se recolhendo ao passo molhado do poeta indignado. Nada sobrava. Pegar um ônibus de volta já? Não. Tinha vindo para percorrer todo o trajeto desse endereço famoso da capital dessa metrópole doida e foi o que fiz, com minhas botas mais molhadas a cada passo ao tentar me desviar das poças formadas pelas depressões nas calçadas. E a depressão em minha alma foi sendo pisoteada ao mesmo tempo. Sensação de que o melhor se perdeu lá atrás. Antes de sair para a rua, com seu tempo inegavelmente nublado (mas eu não quis enxergar) fui me olhar no espelho para limpar a baba da boca (hoje em dia, um fenômeno vem acontecendo, mesmo após breve cochilo, acordo babado) mas eu não vi meu rosto refletido. o que vi foi um velho triste que me persegue insistentemente.
Pés molhados e medo. Foi o que senti. Como num ano perdido no início dos anos 80. Minha mãe me mandou comprar um saquinho de leite. Sim. Naquele tempo o leite vinha num saquinho. No meio do caminho de volta parei numa banca de jornal e observei um grupo de meninas mais velhas e histéricas a folhearem uma revista com fotos de um novo grupo musical que tinha estourado, o "Menudo". Continuei meu caminho pensativo. Me imaginando como um dos membros do grupo a ser reverenciado pelas meninas e como aquilo deveria ser bom, ou não? Era esse o papel de um menino normal, ou não? E depois o homem já crescido, procriaria e deixaria seu legado. É assim que deveria ser..Ou não? Em meio a meus imbecis devaneios tropecei e deixei cair o saquinho de leite, que se espatifou aos meus pés, e voltei para casa com os tênis a fazerem "Ploc..Ploc..Ploc..." encharcados de leite. Tomei um esculacho merecido e ao voltar na padaria, a dona portuguesa me deu outro esculacho, dizendo que o leite era apenas um por cliente. Voltei arrasado para casa e tive que buscar um novo leite em outro lugar, e pagar por meu jeito desastrado com o dinheiro que ganharia aquela semana para comprar um gibi.
Enfim, com 50 anos nas costas, debaixo dessa chuva, me dei conta que não existem regras e ninguém afinal anda nos sapatos de ninguém... E decido não desviar das poças e assumir que não adianta tentar desviar a todo custo, assumir que estou todo molhado afinal, e decido pisar indiscriminadamente em todas elas, repetindo o velho mantra "menúdico": "Não se reprima! Não se reprima!" Tanto tempo desperdiçado, mas referenciando a canção do já em "carreira solo" Ricky, não é mais possível dar "um pasito pá' atrás"...Pés molhados e medo. Noutra época o medo era da bronca. Hoje, o medo é de voltar para casa e encontrar um velho ainda mais irreconhecível no espelho. Que me diria com o jeito mais rabugento e sarcástico de velho:
---- Não adianta chorar o leite derramado, garoto...
André Diaz
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