terça-feira, 2 de junho de 2020

O Arroto e o Por do Sol

Diário da pandemia: 09 de abril de 2020.
Após algumas latinhas, coloco minha máscara e desço ao supermercado. No caminho ele sobe. Impávido e valente. O arroto sai e invade as narinas, que já se esforçam para conseguir ar atrás do tecido grosso. O forte odor me transporta para os tempos de adolescência, de porres homéricos e sonhos tolos, quando para fugir da realidade, bebia litros e litros de álcool e terminava os dias expulsando todo o conteúdo das tripas numa bela praça, com o nome mais bonito ainda: "Por do Sol". As vezes, o liquido acabava sendo expulso pelas narinas também. Era ruim. Era horrível mesmo. Mas no dia seguinte, graças ao poder regenerativo da juventude, a operação era repetida. Hoje, nessa expectativa cruel de conviver com um vírus assassino sempre á espreita, sentir esse nauseabundo cheiro, me fez bater uma velha emoção da juventude, essa aparentemente infinita estrada cheia de vigor e fúria, inconsequência e sede de viver tudo. E quando não conseguimos sorver este tudo, acabávamos por tentar sorvê-lo nos litros e litros de álcool, que vejam só, só hoje, nas limitações e dores do amadurecimento, consigo de fato, apreciar. Porque naquela época, a lei era "ficar louco", mesmo achando a cerveja um troço amargo pra caralho.
 Como em outrora, pretendo repetir a operação amanhã, fazendo com que o forte odor penetre as narinas, fazendo com que meus olhos lacrimejem e por breve instante vejam um por do sol, que sempre há de despontar na esperança de um novo dia, ou na catinga de um arroto movido a muitas latinhas.

Nenhum comentário: